TEXTO PARA LEITURA

O Fantasma da Quinta Avenida

Jerônimo Monteiro

I – APARECE O FANTASMA 

Dick Peter chegou à casa de Mary às oito horas da noite. O senhor Patrick havia saído numa viagem, e Dick foi introduzido no luxuoso salão de visitas.

Seus olhos não se despegavam da escadaria de mármore por onde Mary costumava descer com seu gracioso passo e um luminoso sorriso nos lábios.

Passaram-se cinco minutos, mas Dick não estranhou a demora... As mulheres, quando se trata de melhorar a sua beleza, não têm muita pressa...

De súbito, um grande grito encheu a casa toda. Era um grito de mulher, lancinante, terrível, que provocou no moço um forte estremecimento e lhe deu a viva intuição de que alguma desgraça acabava de acontecer.

Dick Peter era homem de ação, e não demorou mais de dois segundos para entrar em atividade. Aos pulos, galgou a escadaria de mármore e chegou ao primeiro andar, onde eram situados os aposentos de Mary.

Lá em cima estava tudo em silêncio, mas, de baixo, vinha o ruído do tropel dos criados que corriam para ver o que teria acontecido na casa sempre tão calma.

A porta do quarto de Mary estava fechada por dentro, e Dick descarregou sobre ela uma forte pancada.

Ninguém respondeu. Nesse momento, os criados chegavam ao lado de Dick, falando todos ao mesmo tempo, assustados, desorientados e cheios de medo.

– Silêncio! – gritou Dick. – Onde está a governante? Uma senhora idosa, trêmula e pálida de medo, aproximou-se.

– Onde está a chave deste quarto?

– Está lá embaixo...

– Vá buscá-la! Depressa!

A mulherzinha pôs-se a descer a escadaria, o mais rapidamente que lhe permitiam as suas velhas e entorpecidas pernas.

Mas Dick não podia esperar. A sua impaciência era grande demais. Fazendo recuar a criadagem, afastou-se alguns passos e atirou o corpo contra a porta. Houve um forte estalido. Mas a porta ainda não cedera. Dick afastou-se novamente e atirou-se com a maior força que possuía. Desta vez, a porta abriu-se com violência, arrancando lascas do batente.

Os criados iam precipitar-se para dentro, mas Dick fê-los parar com um gesto, e entrou sozinho.

Dentro do quarto, Mary estava estendida no chão, pálida como um cadáver e segurando ainda na mão crispada um arminho de pó de arroz.

Nada mais.

Os móveis em perfeita ordem, e a janela aberta para a noite negra e silenciosa.

Dick abaixou-se e procurou sentir o coração da moça. Pareceu-lhe que ele não batia mais; insistindo, no entanto, sentiu que o coração lhe pulsava ainda, embora levemente.

 Ajoelhado ainda sobre o corpo, voltou-se e gritou para os criados:

– Vão chamar um médico, depressa!

Imediatamente, dois criados se atiraram pela escada abaixo. Enquanto isso, Dick levantou o corpo de Mary como se ela fosse uma boneca e depositou-o sobre o leito, pondo-se a friccionar-lhe ansiosamente as mãos.

Depois, mandou vir um copo de água, que foi derramando, gota a gota, entre os descorados lábios de sua amada.

Alguns minutos depois, entrava no quarto o Dr. Sammy Cave, que morava no palacete vizinho.

– Que aconteceu aqui? – foi ele perguntando com sua voz fanhosa.

– Não sei, doutor. Eu estava lá embaixo, quando ouvi um grito e corri para cima, vindo encontrar a senhorita Mary neste estado, estendida no chão.

Enquanto falava, Dick ia examinando a fisionomia do médico, e não ficou gostando muito dele. Com seu corpo atarracado, com sua voz fanhosa, seus olhos amortecidos e sua barbicha em ponta, o Dr. Cave tinha, realmente, no aspecto qualquer coisa de repulsivo que impressionava mal logo à primeira vista. Dick, porém, procurou esquecer-se disso, para pensar somente em Mary e nos cuidados de que ela precisava.

Depois de ter examinado a moça, o Dr. Cave voltou para Dick os seus olhos amortecidos e disse:

– Não é coisa de importância. Ela deve ter sofrido um susto qualquer e perdeu os sentidos. Mas ficará logo boa. Depois, com 24 horas de repouso, não terá mais nada.

Em seguida, receitou qualquer coisa, dizendo a Dick:

– Enquanto o remédio não chegar, não lhe façam nada. Deixem-na em repouso.

– Mas eu não vou deixá-la aqui sozinha...

– É melhor deixá-la – disse o médico.

– Bem – respondeu Dick contrariado. – Se acha isso necessário, sairei.

E todos se retiraram, descendo as escadas. Dick, no entanto, preso por um pressentimento qualquer, não foi para baixo. Colocou uma poltrona ao lado da porta do quarto e sentou-se ali, para velar.

Alguma coisa má lhe apertava o coração. Dir-se-ia que um mal-estar, pouco a pouco, dominava todo o seu ser.

Sentado na sua poltrona, ele apurava cuidadosamente o ouvido, para surpreender qualquer rumor, e nem sabia por que fazia isso.

Assim se passou meia hora.

Por fim, a tensão nervosa de Dick tornou-se tão violenta que ele não pôde suportar mais. Levantou-se, com o máximo cuidado, entreabriu a porta. A princípio, a meia-luz que reinava dentro do quarto, em contraste com a iluminação forte do corredor, não o deixou ver nada.

De repente, porém, pareceu-lhe que havia um vulto branco junto à janela. Era um vulto alto, de formas indefinidas.

Pensou que poderia ser Mary delirando, e chamou:

– Mary!

Imediatamente o vulto teve um sobressalto e fez um gesto, como quem vai saltar a janela. Nesse mesmo instante, Dick, olhando para o leito, viu que Mary continuava estendida na cama. E viu também que o vulto trazia um lençol, ou coisa parecida, atirado pela cabeça, cobrindo-lhe o corpo todo.

Então, Dick abriu completamente a porta e avançou.

O fantasma deu outro impulso para saltar a janela. Dick, rápido como um raio, puxou do revólver e atirou sobre ele.

A fumaça escureceu tudo, mas Dick viu ainda o fantasma pular a janela, desaparecendo instantaneamente.

Vendo o vulto cair, Dick Peter não perdeu tempo. Dirigiu-se para a porta e, ao sair, esbarrou com os criados, que vinham novamente subindo, espavoridos com aquele tiro.

– Fiquem aqui dois homens e a governante – disse Dick –, e os outros desçam comigo.

Ele não parou para dar aquela ordem. Quando terminou a frase, já estava embaixo da escada. Dois homens partiram atrás dele e, em menos de um minuto, estavam os três no parque, ao fundo da casa, para onde dava a janela do quarto de Mary.

– Estava um vulto dentro do quarto – explicou Dick aos homens –, eu atirei e ele caiu para fora. Deve andar por aqui.

E os três homens puseram-se a procurar o vulto, que, forçosamente, devia estar ferido.

Mas, por mais que procurassem, nada encontraram. Esquadrinharam o parque todo, foram até os altos muros que o separavam da rua, sem conseguir descobrir rasto algum do misterioso vulto.

– Ora esta! – dizia Dick intrigado. – Eu tenho a certeza de ter avistado um vulto. Pode ser que a bala não lhe tenha pegado, mas fatalmente ele deve ter-se atirado da janela. Não há escada alguma... Por onde diabo teria ele sumido?

Os três homens reuniram-se novamente sob a janela, procurando vestígios no chão. Um dos criados foi buscar uma lanterna elétrica, e começaram uma investigação meticulosa nos arredores.

É verdade que não se poderiam encontrar sinais de pés, porque um passeio de cimento, de dois metros de largura, rodeava o edifício todo. Ao lado desse passeio havia uma alameda asfaltada, estendendo-se em seguida o gramado.

Mas, se não era fácil encontrar sinais de pés, Dick esperava encontrar pingos de sangue, ou outra qualquer coisa. Mas nada encontrou. Nem o mínimo sinal que lhe fornecesse qualquer indício sobre o extraordinário desaparecimento.

De repente, Dick levantou os olhos e começou a pensar numa coisa: Como poderia o vulto ter subido até à janela? A altura não era muita, apenas uns cinco metros, mas as paredes eram lisas, sem ornamento algum onde uma pessoa se pudesse firmar. Por baixo da janela do quarto de Mary havia apenas um vitral encaixado, que dava para a escada de serviço. Por ali ninguém poderia ter subido. O olhar de Dick fixou-se no fio do para-raios, que descia ao lado da janela. Mas como poderia um homem trepar por ali? E Dick experimentou subir, não o conseguindo. O arame cortava as mãos e a pele queimava-se ao escorregar.

– Por aqui, ele não pode subir – disse Dick. 

– Só se ele foi voando – disse um dos criados.

Dick lançou-lhe um olhar de mau humor. O momento não era para brincadeiras.

 O outro criado, com o terror estampado no rosto, murmurou:

– Quem sabe se era um fantasma?

– Qual fantasma, nem meio-fantasma! Quem é que acredita em fantasmas?

– Sim – balbuciou o criado nervoso –, mas ele não pôde subir nem descer por aqui. Sumiu. O senhor deu-lhe um tiro, e não o feriu ... Isso só pode acontecer com um fantasma ...

Dick viu que, a seu pesar, teria que aceitar aquela hipótese absurda, se não encontrasse a explicação racional do caso.

Vendo que nada lhe adiantava andar por ali de um lado para outro resolveu subir, para ver como Mary ia passando.

Ela estava voltando a si, com o semblante ainda alterado pelo terror. Vendo o noivo, agarrou-se a ele desesperadamente. Parecia procurar proteção escondendo a sua cabecinha loura no largo peito de Dick Peter.

– Vamos, querida, vamos ... Já passou tudo ... Que lhe aconteceu?

– Dick! Que coisa horrível – repetia ela cheia de medo. – Que coisa horrível! Parece até que foi um pesadelo!

– Não pense mais nisso, querida. O que você viu foi uma alucinação ...

– Não foi, Dick. Eu vi!

– Mas viu o quê? Pois não havia coisa alguma aqui!

– Havia, sim, Dick. Eu vi. Que horror!

– Seja razoável, Mary. Estamos no coração da maior cidade do mundo, e você vê coisas que só se justificariam numa aldeia de cafres! Que foi que você viu, afinal?

– Um fantasma. Eu estava passando pó de arroz quando, pelo espelho, vi qualquer coisa que se movia junto da janela. Fiquei gelada, e o meu coração parou. Mas voltei-me rapidamente e vi um vulto branco, um fantasma! ...

– Ora, Mary, vamos, raciocine. Você bem sabe que essas histórias de fantasmas são tolices. Você teve uma alucinação. Procure dormir, e tudo passará. Amanhã, com a luz do sol, você rirá desses sustos ...

– Não, Dick. Nunca mais me esquecerei disto!

– Sossegue. Procure dormir.

– Você não sairá daqui, não, Dick? Tenho tanto medo ...

– Não. Não sairei. Procure dormir.

Mary ajeitou-se na cama, e Dick arrastou uma poltrona para junto do leito, instalando-se nela.

Os criados retiraram-se e um deles, Bob, a uma ordem de Dick, sentou-se do lado de fora da porta, onde Dick estivera havia pouco.

Ao contrário do que esperava, Mary não tardou em adormecer. Meia hora depois de haver trocado com Dick as últimas palavras, já dormia. Mas era um sono agitado.

Quando percebeu que Mary dormia, Dick levantou-se da poltrona e foi até à janela. Olhou para fora, sem ver nada de suspeito. Depois, olhou para o chão, por acaso. E teve um sobressalto. Havia sobre o tapete uma coisa que o deixou estupefato: era a bala deflagrada do seu revólver.

Apanhou-a e examinou-a. Estava perfeita, sem um arranhão, sem uma amolgadura. Dick estava completamente tonto. Como poderia ter acontecido aquilo?

De repente, ele teve uma ideia. Pôs a bala no bolso do colete e saiu do quarto. Na porta, falou a Bob, em voz baixa:

– Bob, eu vou sair, e talvez demore ... Talvez só volte pela manhã ... Você, fique lá dentro do quarto, sentado onde eu estava. Não adormeça, porque a gente nunca sabe o que pode acontecer. A coisa não está muito boa, não ...

Bob não disse uma palavra. Entrou no quarto e tomou o lugar de Dick.

Então, mais sossegado, Dick desceu pela escadaria, e, pouco depois, os pesados portões do parque batiam.

Bob não era homem que tivesse medo. Achava toda aquela história absurda e não se sentia, de modo algum, aterrorizado, como pareciam todos os outros.

Por isso, comodamente sentado, tirou do bolso um livro de capa vermelha, que começou a ler com todo o interesse.

Leu durante uma hora. Depois, o sono veio chegando insidiosamente. Bob foi até a janela e, por desencargo de consciência, examinou os arredores. A calma da noite era completa. Não se ouvia ruído algum, fora o barulho de costume da cidade, que, para quem está habituado, não se conta.

Depois de examinar tudo, voltou à poltrona, disposto a dormir, certo de que não havia perigo algum por perto.

Estendeu as pernas, guardou o livro no bolso e descansou a nuca sobre o encosto da poltrona, fechando em seguida os olhos.

Agora, dentro do enorme palacete, o silêncio era completo.

Mary, de vez em quando, era levemente agitada por algum sonho mau. Bob, de frente para a janela, pernas estendidas, mãos cruzadas sobre o ventre, cabeça recostada para trás, dormia na maior das venturas.

E os minutos foram-se passando.

No meio do silêncio, de repente ouviram-se as pancadas de um carrilhão batendo os quartos, seguidos de uma pancada sonora, trêmula, prolongada.

O som do carrilhão tremulava ainda no ar, quando a janela que Bob se esquecera de fechar começou a mover-se ...

E um vulto branco, enorme, apareceu. O seu rosto estava coberto. Depois, lentamente, o vulto ergueu a mão que segurava um tubo de taquara, e levou a ponta do tubo à boca. Ouviu-se um leve sibilar, e Bob teve um estremecimento violento.

Em seguida, a cabeça do criado moveu-se para diante e pendeu pesadamente sobre o peito, enquanto o seu rosto se encobria com as cores sombrias da morte ...

 

III – A POLÍCIA FAZ PERGUNTAS

 

Assim que a cabeça de Bob pendeu pesadamente sobre o peito, o fantasma penetrou no quarto e foi direito a ele. Pegou-lhe no queixo e levantou-lhe a cabeça.

No mesmo instante, fez um gesto de contrariedade e largou a cabeça, que tornou a pender, inerme. Evidentemente, ele não esperava ver Bob morto, mas outra pessoa ...

Em seguida, o vulto apanhou uma pequena seta que estava caída sobre as pernas do morto e guardou-a sob o pano que o cobria. Feito isso, voltou-se para a moça adormecida.

O semblante de Mary estava pálido e as suas feições deixavam adivinhar que havia dentro de seu peito uma grande agitação.

O fantasma pareceu hesitar. Durante alguns segundos o seu corpo balançou levemente entre a cama e a poltrona. Ora parecia querer abaixar-se para o morto, ora parecia decidido a dirigir-se ao leito.

Nesse momento, ouviram-se passos subindo a escada. O vulto hesitou ainda um instante, depois correndo para a janela pulou-a, desaparecendo.

Quase imediatamente depois, a porta abriu-se e Dick Peter entrou. Olhando para Bob, Dick ficou contrariado, e resmungou:

– Seu malandro ... esqueceu o seu dever. .. adormeceu ...

E aproximando-se de Bob pôs-lhe a mão sobre o ombro, sacudindo-o. Mas o corpo do pobre criado curvou-se todo sobre si mesmo e rolou para o chão.

Dick Peter, a custo, susteve um grito. Abaixou-se e examinou o corpo caído, verificando que o homem estava morto.

E o seu rosto empalideceu de raiva e terror.

– Agora, a coisa é mais séria – disse ele em voz alta – temos um morto ... Pobre Bob ... Agora, é pior ...

Levantou-se, percorreu o quarto com os olhos, dando com o telefone. Dirigiu-se a ele rapidamente, e discou.

– Alô! Ponha-me em comunicação com a Polícia ... rapidamente ... Sim... .

– Alô! Alô! É o Chefe de Polícia? Sim? Perfeitamente . Aqui é da casa de Mister Olivian Patrick, Quinta Avenida 202. Acaba de ser cometido um crime ... Perfeitamente ... Já? Muito bem ... Quem está falando aqui é Dick Peter...

Dick tornou a pousar o aparelho e apertou o botão da campainha que se achava ao lado dele. Pouco depois, a velha governante aparecia envolvida num peignoir, e com os olhos vermelhos.

– Pronto – ia ela dizendo, mas, ao ver o corpo de Bob estendido no chão, deu um grito, apavorada.

– Deus do céu! Que aconteceu?

– Psiu! Não a acorde! – disse Dick olhando ansiosamente para Mary adormecida.

A velha governante levou as mãos à boca, como para se impedir de gritar, e arregalou tanto os olhos que eles pareciam querer saltar das órbitas.

– Meu Deus! Meu Deus! – gemia ela. – Como foi isto? Que aconteceu aqui?

– Silêncio! – recomendou Dick – não se ponha nervosa. Os outros criados estão dormindo?

– Estão sim. Céus! Que coisa horrível!

– Bem. Deixe-se de lamentações. Vá lá para baixo e espere os homens da Polícia, que vão chegar. Quando entrarem, traga-os aqui para cima. Compreendeu bem? Então, vá. A velha parecia estar com os pés presos ao soalho, mas arrancou-se, afinal, e foi descendo.

Dick abaixou-se junto ao corpo de Bob e pôs-se a examiná-lo cuidadosamente, sem lhe tocar. Foi assim que viu uma pequena mancha arroxeada no seu pescoço, acima do colarinho.

– Uma zarabatana – murmurou. – Mataram-no com uma zarabatana ... Quem será o criminoso? .. Deve ser o tal fantasma ... Ah! Se eu o agarrar! ... E isso talvez fosse para mim ... A desgraça de Bob, naturalmente, foi estar dormindo com a cabeça voltada para trás. O criminoso não lhe pôde ver a fisionomia, e teve um excelente alvo no pescoço ... Se lhe tivesse visto a cara, talvez não o matasse ...

Nesse momento, ouviram-se passos embaixo. Eram os homens da polícia, que chegavam. Passos apressados subiram a escadaria, e três homens apareceram à porta. Um deles adiantou-se e disse:

– É o Sr. Dick Peter?

– Sim. Estou falando com o inspetor Morris, não é?

– Perfeitamente, Sr. Dick. Que se passou aqui?

– Têm-se passado coisas extraordinárias nesta casa, desde ontem à noite ...

– Bem, conte o que sabe, em ordem.

Dick Peter, vagarosamente, contou tudo o que se passara desde às oito horas da noite, e que nós já conhecemos bem, até ao encontro do cadáver de Bob.

– Mas – perguntou o inspetor –, por que saiu o senhor, deixando Bob aqui? Que foi fazer?

E o olhar do inspetor fixava-se duramente em Dick Peter. Dick pareceu ficar um tanto perturbado e respondeu:

– O senhor conhece-me, inspetor. Peço licença, por enquanto, para não dizer nada sobre isso. Preciso de mais algum tempo para poder confirmar uma suspeita. Então terei todo o prazer em comunicar-lhe.

O inspetor olhou para ele desconfiado, mas não insistiu. Dick, metendo a mão no bolso, tirou a bala que recolhera de sobre o tapete e apresentou-a ao inspetor Morris. – Foi essa bala que eu atirei no fantasma ...

Morris pegou no pequeno pedaço de chumbo, muito interessado. Viu que ele não tinha amolgadura alguma, e passou-o ao outro policial que estava ao seu lado.

– Que lhe parece isto, sargento? – perguntou ele.

– Realmente – falou o outro examinando a bala –, isto é interessantíssimo ... Sr. Dick, tem aí a arma com que deu este tiro?

– Sim – respondeu Dick, entregando uma arma ao sargento.

– Permita-me que a guarde, por algum tempo ...

– Bem – disse o inspetor Morris, dirigindo-se à velha governante, que ainda tremia –, acorde todos os criados e mande-os ficar lá embaixo. Vamos interrogá-los.

Depois, para um dos homens:

– Doutor, faça o favor de examinar esse homem. – E, dirigindo-se para outro, acrescentou: – Sargento, vá lá para fora e proceda às investigações necessárias. Eu vou examinar este quarto e, depois, interrogarei os criados.

O médico abaixou-se sobre o cadáver de Bob, e o sargento saiu. Então, Dick, dirigindo-se ao médico, falou:

– Doutor, seria bom tirar daqui a senhorita Mary. Ela já sofreu um grande abalo hoje e o seu médico disse que ela não pode sofrer mais comoções. Se acordar ... O senhor podia dar-lhe uma pequena quantidade de narcótico, para que possamos transportá-la para outro quarto, sem que ela sinta.

O médico interrogou o inspetor Morris, que nada teve a opor. Pouco depois, Mary era transportada para um aposento próximo.

Quando Dick tornou a entrar no quarto, Morris estava em franca atividade, examinando tudo com uma lente.

– O criminoso usava luvas ... – resmungava ele. – Não deixou rasto algum ...

Pouco depois, o médico informava:

– O homem morreu há cerca de uma hora. Foi ferido por uma seta embebida em veneno violento.

– Mais nada, doutor?

– Mais nada.

– Então, faça o favor de descer e mandar aqui o fotógrafo.

Pouco depois, o fotógrafo subia e batia mais de uma dúzia de chapas, sob a direção de Morris. Feito esse serviço, ele desceu com um recado do inspetor para que fosse um homem à casa do dr. Cave, mandando-o ir à delegacia. Tendo feito isso, o inspetor e Dick ficaram novamente a sós. De repente, Morris perguntou a Dick:

– Onde está o Sr. Patrick?

– O pai de Mary foi a Boston, a negócio ...

– Fale-me sobre ele.

Dick hesitou. O pai de Mary não era um exemplo de carinho, nem parecia gostar muito do lar, vivendo uma vida aparentemente atormentada. Mary, no entanto, amava-o muito, apesar das suas qualidades de usurário, para que Dick pudesse falar com franqueza. Desse modo, desculpou-se, dizendo que não o conhecia o suficiente para falar.

Então, olhando-o fixamente, o inspetor disse:

– O senhor sabe quem é o fantasma!

Dick ia dizer alguma coisa, mas o inspetor repetiu:

– O senhor sabe quem é o fantasma. Diga-o!

 

IV – ESCLARECE-SE O MISTÉRIO DA BALA

 

Dick Peter a princípio ficou espantado com a pergunta do inspetor, mas, logo, percebendo que ele aplicava um truque, sorriu e respondeu:

– Não, inspetor. Está enganado. Eu tenho, realmente, as minhas desconfianças, mas não quero comprometer ninguém sem provas. Penso que amanhã já lhe poderei dizer qualquer coisa de positivo. Por enquanto, não tenho senão suspeitas, e suspeitas não podem condenar...

O inspetor não insistiu. Sabia que, quando Dick fazia uma promessa, cumpria-a.

Então, um dos seus auxiliares entrou no quarto, acompanhado do Dr. Cave.

O inspetor fez várias perguntas ao velho médico de voz fanhosa, obtendo sempre respostas positivas. Quando lhe perguntou onde estivera depois de ter visitado Mary, ele declarou que estivera em sua casa, acrescentando:

– Não sei por que me vieram incomodar a esta hora. Parece que suspeitam de mim ... Por que havia eu de matar este pobre homem?

– É o que procuramos saber.

– Bem, mas não serei eu quem o possa informar. Eu não tenho nada com esta história, e peço que me deixem sossegado.

Nesse momento, ouviram-se passos precipitados subindo a escada. Era o pai de Mary que chegava. Vinha assustado.

– Que é isso? Que aconteceu em minha casa? Que é isso? Bob morto? Oh! Quem fez este crime horrível? Senhores! Quero saber o que se está passando aqui! Onde está minha filha?

Dick Peter ouvia aquela catadupa de palavras sem se impressionar, achando que era exagerado o seu desespero. Ele sabia que o Sr. Patrick era impassível como uma máquina. E o pai de Mary voltou-se para ele, dizendo:

– Sr. Dick, explique-me o que está acontecendo!

– Pouca coisa, por enquanto, Sr. Patrick. Receio que tenha que haver mais ainda. Apareceu um fantasma à sua filha, decerto querendo matá-la, mas não conseguiu o seu fim. Depois, voltou e matou Bob. Por enquanto, é só.

– Só? Diz o senhor! E espera mais alguma coisa? Está louco! Que história de fantasma é essa?

– Por enquanto, somos obrigados a chamá-lo assim, porque surge em janelas que ninguém pode alcançar, desaparece sem deixar vestígios, e não é atingido pelas balas.

O inspetor, que estivera observando o Sr. Patrick sem dizer nada, perguntou de repente:

– Sr. Patrick, queira nos responder a algumas perguntas: onde esteve desde ontem?

– Em Boston, fiz uma viagem de negócio.

– Bem. Não tem uma ideia de quem possa desejar a morte de sua filha?

– De minha filha? Mas, não! Quem poderia querer fazer mal à minha querida Mary? Ela não pode ter inimigos!

– Conhece o Dr. Cave?

– O nosso vizinho? Muito pouco. Ele não frequenta a nossa casa.

– Bem. Depois veremos melhor estes pontos. Sargento, vá com o Dr. Cave lá para baixo e reúna os criados. Com licença, senhores. Peço que não se afastem, por enquanto. Talvez precisemos ainda de trocar ideias ...

E o inspetor desceu atrás dos outros.

Dick Peter e o pai de Mary estavam sentados um diante do outro, preocupados e com evidentes sinais de cansaço.

Olivian olhava fixamente para o tapete e Dick examinava-lhe a fisionomia com grande interesse.

De repente, Olivian levantou os olhos, deu com o olhar de Dick, pareceu perturbar- -se um pouco, e perguntou: – Onde está a minha filha?

– No seu quarto.

– Ela não sofreu nada?

– Não. Só o susto.

– Com licença. Vou vê-la. – E Olivian levantou-se, saindo do quarto. Dick, logo depois, saiu também e dirigiu-se para baixo, onde o inspetor Morris continuava a interrogar os criados.

– Ainda nada conseguimos – disse Morris a Dick Peter.

– O crime foi, evidentemente, cometido por alguém da casa, pois não havia tempo para sair do prédio. Minhas suspeitas recaem sobre o chauffeur e o Dr. Cave, que mora no prédio pegado a este. Que lhe parece?

– Nada posso dizer, inspetor, mas tenho a impressão de que nenhum dos dois tem nada que ver com isto ...

– Por que afirma tal coisa?

– Eu não afirmo nada. É simples impressão.

Mas, interiormente, Dick estava certo da inocência dos dois homens. O Dr. Cave tinha, realmente, um aspecto desagradável e misterioso, mas isso não era suficiente para se culpar um homem.

– Além disso – continuou o inspetor –, o senhor não disse ainda onde esteve enquanto Bob era assassinado. Tinha saído uma hora antes. Onde esteve?

Dick hesitou por um momento, mas respondeu:

– Bem. Vou dizer-lhe o que fui fazer. Fui à redação da revista Mundo Novo.

– Para quê?

– É simples. Porque, quando apanhei a bala no chão, aquela bala que eu atirara contra o vulto, fiquei estupefato com o caso, mas lembrei-me de ter lido numa revista uma notícia sobre a invenção de um tecido impossível de ser perfurado com tiros. Olhe, aqui está ela.

E Dick enfiou a mão no bolso tirando um recorte de papel, que entregou ao inspetor. Este leu em voz alta: “Experiências extraordinárias com um novo tecido – Ontem esteve nesta redação o Sr. Harry Brown, que fez experiências com um extraordinário tecido, de sua invenção. Este tecido, feito de uma fibra elástica, não é perfurado nem por tiros de fuzil. Trata-se de uma composição sintética, que cede ao contato da bala, sem se perfurar, amortecendo completamente a força do projétil. O Sr. Brown espera aperfeiçoar o seu tecido a ponto de permitir que se fabriquem com ele roupas comuns. Por enquanto, ele apenas conseguiu produzi-lo em lençóis que não permitem costuras”.

– Aqui está a chave! – disse o inspetor arregalando os olhos.

– De quando é esta revista?

– De 1936.

– Um ano! E não se falou mais nesse tal Brown?

– Nunca mais, que eu saiba. Eu o conheci pessoalmente, parece-me que ele vendeu o seu invento e foi para fora do país.

– De quem é a revista que publicou isto?

– É o Mundo Novo, do sr. Patrick.

– Muito bem. Deixe-me ficar com este recorte. Depois, voltando-se, o inspetor deu de cara com o sr. Patrick, que estava atrás deles.

– Não encontrou nada, senhor inspetor? – perguntou o pai de Mary.

– Nada, mas parece que vamos encontrar o fio da meada. Depois falarei consigo a esse respeito. Agora, vamos sair. Sargento, notifique o chauffeur e o dr. Cave para que vão à delegacia amanhã. E vamo-nos embora, que esta gente precisa descansar.

Pouco depois, todos tinham saído, ficando Dick Peter e Olivian Patrick a sós, no salão.

 Ambos se mantiveram em silêncio durante algum tempo. Depois, Dick falou:

– Não desconfia de ninguém, sr. Patrick?

– Não. Mas esse dr. Cave tem mesmo uma cara esquisita, não lhe parece?

– O que me parece, sr. Patrick, é que há muita gente com a cara esquisita e incapaz de praticar qualquer mal, assim como há muitos outros com cara de inocentes e capazes de tudo. Não lhe parece?

– Mas, por que diz isso?

– Por que é o que mais frequentemente se vê.

– Mas, no caso presente, quem poderia ter interesse em fazer mal a minha filha? Um anjo que não pode ter inimigos ...

– É, realmente, esquisito. Por enquanto, nada se pode dizer. Esperemos mais algum tempo, e tudo ficará esclarecido.

– Faço votos. Bem, sr. Dick, precisamos descansar. Principalmente o senhor, que trabalhou tanto ...

– Realmente – disse Dick levantando-se. – Ambos precisamos bem dum descanso. Boa-noite, sr. Patrick.

Os dois homens trocaram um aperto de mão e Dick retirou-se.

Nessa hora, já estava clareando o dia. Dick, porém, ao sair, não se dirigiu para sua casa. Apenas chegado ao portão, tornou a entrar e escondeu-se no parque que rodeava a residência do Sr. Patrick. Ele estava certo de que alguma coisa ainda havia de acontecer naquela madrugada.

O parque estava imerso nas sombras.

Dick foi caminhando junto ao muro, até em frente dos aposentos de Olivian e de sua filha, e ficou a observar, do seu escuro abrigo, as duas janelas iluminadas.

 

V – O FANTASMA ATACA DICK PETER

 

Durante algum tempo, nada notou de anormal.

Mas, pouco depois, pareceu-lhe que um vulto andava no quarto de Mary.

O seu coração começou a pulsar fortemente. Por duas vezes o vulto veio à janela, espiou para fora, pondo-se a andar novamente no quarto de um lado para outro.

Dick não pôde distinguir a fisionomia da pessoa que andava lá em cima, mas estava certo de que não podia ser outro senão o pai de Mary.

Aliás, isso nada tinha de espantoso. O homem, naturalmente, andava à procura de vestígios do drama que ali se desenrolara fazia ainda poucas horas.

Depois, as luzes apagaram-se, ficando apenas as janelas do quarto de Olivian iluminadas por uma luz muito fraca.

Dick Peter, enquanto examinava aquele movimento, torturava o cérebro para descobrir como poderia ter o criminoso subido até à janela do primeiro andar, e, sobretudo, como poderia desaparecer tão rapidamente.

De repente, notou que a porta da frente da casa se abria e que um vulto passava para fora, acendendo uma lanterna elétrica. Era Olivian Patrick. Ele veio chegando e pôs-se a examinar o chão, por baixo das janelas, como Dick já fizera com os criados.

O moço acompanhava com grande interesse aquele trabalho, procurando adivinhar o que fazia ali o pai de Mary. Viu que Olivian se abaixava como quem procura alguma coisa com grande interesse. Depois, como ele se afastasse, Dick deu um passo para poder continuar a vê-lo. Nesse momento, porém, pisou numa lata que estava no chão, fazendo um ruído bastante forte. O sr. Olivian voltou-se imediatamente, gritando:

– Quem está aí? – e, tirando o revólver, avançou para Dick. Este, porém, saiu ao seu encontro dizendo:

– Sou eu. Dick Peter.

– Que faz aqui? – perguntou o velho.

– Estou esperando que aconteça alguma coisa.

– Ah! Boa ideia ...

– E o senhor? Que fazia?

– Eu procurava vestígios. Pode ser que alguma coisa tenha escapado à polícia... Bom, vou para dentro. O senhor vai continuar vigiando?

– Não. Penso que já não é preciso. O sol vai nascer. É melhor ir dormir. Mais uma vez, boa noite, Olivian.

– Boa noite, sr. Dick Peter. Ambos os homens seguiram até o portão e Olivian ficou olhando Dick Peter, que se afastava a passos rápidos. Quando o moço desapareceu ao longe, Olivian voltou para casa, entrou e fechou-se em seu quarto.

Ainda desta vez, no entanto, Dick não foi direto para casa. Ficou rondando por perto do palacete, na expectativa de algum acontecimento. E não foi baldada a sua esperança, porque, passados alguns minutos, o portão abria-se e um homem saía dele, levando na mão uma volumosa pasta de couro.

Dick Peter não hesitou. Compreendeu imediatamente o que estava para acontecer e, correndo a um posto de táxis, tomou um automóvel e voou para casa.

Lá chegando, enfiou-se rapidamente sob as cobertas e tomou a atitude de quem dorme profundamente.

Mas os seus olhos, bem abertos, perscrutavam a porta que deixara apenas encostada.

Quinze minutos mais tarde, ouviam-se passos levíssimos que subiam a escada lentamente.

Depois, a porta entreabriu-se e um vulto apareceu.

Era o fantasma. Lá estava o seu lençol branco atirado sobre a cabeça.

Dick sentiu um calafrio ao pensar na zarabatana, a horrível arma de que aquele monstro se utilizava para abater as suas vítimas.

Por isso, resolveu não esperar pelo golpe.

Deu um salto da cama, atirando-se contra o vulto que avançava para o seu leito.

Nenhum dos dois gritou. Houve apenas um ruído surdo, um ranger de dentes, que deixava compreender a raiva com que os dois homens se haviam agarrado.

Dick esforçava-se para levantar o lençol que cobria o corpo e o rosto do outro, mas, prevendo isso, o fantasma agarrara-se estreitamente ao moço, impedindo-o de realizar o seu intento.

Durante alguns segundos, lutaram de pé, torcendo-se, esforçando-se, cada um, por dominar o seu adversário. Mas as forças de ambos equilibravam-se.

Assim foram lutando, de um lado para outro, até que Dick tropeçou no tapete, caindo com o outro por cima.

O vulto deixou escapar um som rouco de alegria, e levou as mãos ao pescoço do moço.

Dick, desesperado, conseguiu livrar um braço e aplicou um soco no queixo do inimigo, que rolou para o lado.

O moço atirou-se imediatamente sobre ele, desferindo-lhe grande quantidade de socos no rosto. Mas o fantasma não era fácil de se vencer. Enfiou um cotovelo violentamente no estômago de Dick, fazendo-o perder as forças. Dick largou o vulto e pôs-se de joelhos. O outro aproveitou a ocasião para tirar um punhal de sob o lençol levantando-o sobre o rapaz. Dick Peter viu-se perdido. Agarrou furiosamente o braço do fantasma, tentando deter o golpe. Durante alguns segundos, ficaram assim, ambos de joelhos, um esforçando-se para enterrar o punhal, e o outro pondo toda a sua força na mão que segurava o braço assassino. Mas Dick não podia mais. Num último esforço, afastou o corpo, no momento em que o punhal já lhe tocava as roupas, na altura do coração, enterrando-se na carteira de couro que trazia no bolso, e resvalando de modo a feri-lo muito pouco. Nesse momento Dick resolveu apelar para um último recurso: a astúcia. Deu um grito, como se estivesse mortalmente ferido, e abandonou o corpo, caindo pesadamente.

O fantasma ainda hesitou durante um segundo. Depois, vendo que o grito do moço iria atrair gente dos outros apartamentos, retirou rapidamente o punhal, guardou-o e fugiu às pressas, pela porta.

Apenas saíra, Dick levantou-se e fechou a porta indo em seguida à janela que dava para fora, vendo o homem que atravessava a rua, com a sua pasta de couro bem cheia. Ali, naquela pasta, devia estar o lençol impermeável às balas.

Nisto, bateram à porta. Era o zelador do prédio que ouvira o grito e vinha ver o que acontecia.

– Nada – disse Dick –, tive um pesadelo e acordei gritando.

Satisfeito, o homem retirou-se. Dick preparou-se para sair novamente. Passando pelo zelador, na escada, disse:

– Não posso dormir. Vou dar um passeio pela cidade. Talvez me refresque as ideias.

Na primeira esquina tomou um automóvel e mandou tocar para a polícia. Lá chegando, procurou Morris, que dormia no seu quarto, anexo ao gabinete. Morris atendeu prontamente.

– Inspetor, o fantasma continua a agir. Ainda não há meia hora procurou matar-me no meu apartamento. Deu-me uma punhalada que, por felicidade, resvalou na carteira, e me feriu muito pouco. Veja.

– Tirando o paletó, Dick mostrou ao inspetor a roupa rasgada pelo punhal, o arranhão na pele e a carteira cortada pelo golpe.

Em seguida, contou tudo o que acontecera, desde que estivera de vigia no parque até o momento de ser atacado.

Morris não perdeu um segundo. Chamou alguns auxiliares e mandou-os imediatamente buscar o criado de quem suspeitava e o dr. Cave.

Dick pediu-lhe que desse a seguinte explicação sobre ele a todas as pessoas: “Que o sr. Dick Peter fora gravemente ferido em seu apartamento, e que, em estado desesperador, não pudera ainda pronunciar uma palavra”.

Assim, o fantasma ficaria sossegado quanto a ele, e seria mais fácil apanhá-lo.

E os agentes partiram, com essa informação.

Um dirigiu-se à residência do dr. Cave e o outro à de Olivian Patrick. Pouco depois, pelo telefone, ambos se comunicavam com o inspetor Morris.

– Encontraram o dr. Cave? – perguntou este.

– Não. O dr. Cave desapareceu. A sua esposa diz que ele chegou em casa danado depois do interrogatório, que se deitou e agora, quando fomos procurá-lo, é que ela viu que ele não estava mais. E a sua cama está fria, o que denota que há tempo já que ele saiu.

– E o criado?

– O criado não saiu. Esteve a noite toda acordado, ao lado da governante, porque não podiam dormir.

– Bem. Procurem saber do paradeiro do dr. Cave. Vou mandar vigiar todas as estações. Falaram com o Sr. Olivian Patrick?

– Falamos. Ele está desesperado com os acontecimentos e fala em deixar Nova York, dizendo que é incrível acontecerem tais coisas numa cidade civilizada.

– Bom, procurem o dr, Cave. Vou mandar uns homens vigiar a residência de Olivian Patrick, para evitar que o criminoso volte lá. Até logo.

Pendurado o fone no gancho, o inspetor olhou para Dick Peter durante uns momentos. Depois, batendo com o Iápis na mesa, disse, lentamente:

– Não há dúvida, meu caro: o tal fantasma é o dr. Sammy Cave .

– Talvez. .

– Por quê? Não lhe parece?

– Não digo nada. Talvez seja. Quem sabe?

 

VI – O ROSTO DO FANTASMA

 

No dia seguinte, quando soube que Dick Peter ficara ferido, Mary ficou desesperada. O seu pai consolava-a como podia, dizendo que não havia de ser grande coisa, que o moço ainda se salvaria e o criminoso seria apanhado.

Mas ela estava inconsolável. Mandava telefonar frequentemente para o hospital, para ver como ia passando o seu querido noivo. A resposta, do hospital, de acordo com as instruções recebidas da polícia, era sempre a mesma: “O seu estado não se alterou. Continua ainda sem sentidos”.

Queria ir visitá-lo à força, mas não lho permitiram. Ele não podia ser visitado, por ser o seu estado muito melindroso.

E o dia passou-se sem maiores novidades.

O dr. Cave não foi encontrado em parte alguma, e também não houve nenhuma nova tentativa por parte do fantasma.

Depois do almoço, o Sr. Olivian Patrick foi para o seu escritório, como de costume, e Mary ficou em seu quarto, entregue a um enorme desespero.

As investigações, que prosseguiam sem cessar em diversos sentidos, não traziam esclarecimento algum. Aliás, a polícia, completamente convencida da culpabilidade do dr. Sammy Cave, procurava-o por todos os cantos.

Pelas oito horas da noite, o inspetor Morris foi à casa de Olivian Patrick saber, pessoalmente, se não houvera mais alguma novidade. Mary informou-o de que não havia nada. – E seu pai?

– Papai telefonou dizendo que hoje virá mais tarde; recomendou que fechássemos tudo muito bem, e que puséssemos um guarda no portão. E para não esperarmos por ele.

– Bem. Vou mandar um guarda. A senhorita fique tranquila. Dick Peter está melhorando. Não há razão para desespero. .

Voltando à polícia, Morris informou Dick do que soubera.

Dick pensou por alguns momentos e, depois, falou:

– Inspetor, vou pedir-lhe um favor. Tenho um plano para executar e estou certo de que dará os melhores resultados. Está disposto a deixar-me agir? Eu lhe trarei aqui o fantasma.

– Qual é o seu plano?

– Esta noite, o fantasma voltará ao quarto de Mary, para a eliminar ...

O inspetor estranhou, e perguntou a Dick qual era o interesse do fantasma, eliminando Mary.

– Depois saberá tudo bem. São questões de dinheiro. Deixe-me agir. Vou passar a noite na casa de Mary, e peço-lhe três homens. Encarrego-me de tudo e, ou sou um grande idiota, ou o fantasma acabará esta noite nas nossas mãos.

O inspetor deu-lhe ordem para proceder como achasse melhor, e prometeu-lhe os três auxiliares.

Dick Peter deixou a central de polícia escondido sob um ligeiro disfarce, de modo a não ser reconhecido, e, com os três homens, encaminhou-se rapidamente para a casa de Mary, onde todos entraram sem dificuldade. Dick colocou um homem no parque, outro no portão, outro no corredor, junto ao quarto de Mary. Depois, mandou chamar a moça, encerrou-se com ela numa saleta, e tirou o disfarce. Mary ia dando um grito, mas ele tapou-lhe a boca com a mão, dizendo:

– Psiu! Não grite, querida, acalme-se. Aqui estamos juntos, e nada me aconteceu.

Ela espantava-se e perguntava pelo ferimento de Dick. – Não. O meu ferimento não foi nada. Vamos tratar de um assunto mais importante. Você sente-se com forças para enfrentar os acontecimentos que se vão desenrolar esta noite?

Mary, alarmada, perguntava o que estaria para acontecer.

– Ainda não sei, mas você precisa preparar-se para tudo. Tanto a minha vida como a sua estão em perigo. Precisamos ter muita calma e sangue-frio. Preciso que você me garanta que, aconteça o que acontecer, seguirá as minhas instruções.

Mary prometeu que assim faria, e ele prosseguiu:

– Você vai esconder-se no quarto mais afastado da casa, vai fechar-se muito bem por dentro, janelas e portas trancadas, e só abrirá quando eu, ou um dos três policiais, à minha ordem, mandar. E a palavra de ordem é “Acabou-se o fantasma”. Está combinado?

Mary prometeu fazer tudo direitinho e os dois foram procurar o aposento onde ela devia esconder-se, sem que nenhuma pessoa da casa o soubesse ...

Depois de Mary estar em segurança, Dick instruiu os seus homens sobre a combinação feita. Tudo assim combinado, os policiais retomaram os seus postos, e Dick foi para o quarto de Mary. Com algumas roupas e travesseiros, preparou um volume sob as cobertas, para dar a impressão de que a moça estava ali deitada, e ele próprio escondeu-se atrás duma espessa cortina, a dois passos da cama.

E passaram-se algumas horas de enervante espera.

Dick não fazia o menor movimento.

Afinal, alguma coisa sucedeu.

Houve um rumor do lado de fora da janela.

Depois, o vulto apareceu. Dick Peter via-o perfeitamente pela frincha da cortina. E dentro do seu coração havia uma forte vontade de apanhar aquele bandido que eliminava vidas com tanta crueldade.

O vulto abriu a janela e entrou no aposento com passos de veludo. Trazia o lençol sobre a cabeça. Aproximou-se do cito e, na obscuridade, não pôde perceber que havia apenas um monte de roupas sob a colcha. Tirou de sob o pano que cobria um frasco e um lenço. Pingou algumas gotas do líquido sobre o lenço e abaixou-se sobre a cama.

– Narcótico! – pensou Dick Peter.

Quando o vulto se curvou sobre a cama, Dick Peter afastou a cortina e avançou lentamente.

E caiu de chofre sobre o vulto, que, na surpresa, deu um verdadeiro urro. Enlaçaram-se. Dick aplicou-lhe um violento pontapé. O vulto caiu para trás, batendo com as costas na cama.

Nesse momento, Dick agarrou a ponta do lençol que o cobria, e deu um puxão violento.

Apareceu um rosto. Era um rosto hediondo, convulsionado pela raiva, com os olhos brilhando de furor sanguinário. Uma verdadeira máscara de ódio!

Dick reconheceu-o imediatamente: era o sr. Olivian Patrick, o pai de Mary! Dick já esperava por aquilo, mas, mesmo assim, frente a frente com o monstro, sentiu-se paralisado por um momento.

Olivian tirou um punhal, e ia levantar-se para Dick Peter, mas este, rápido como um raio, deu-lhe um tremendo soco no estômago, atirando-o por terra.

Nesse momento, o policial que estava do lado de fora entrou, e algemou o homem caído.

Depois, foi rápido.

O homem foi conduzido para a central de polícia, e Dick Peter foi consolar Mary do tremendo golpe recebido.

Na polícia, o inspetor Morris soube arrancar do prisioneiro toda a verdade. E o estado de abatimento de Olivian era tamanho que ele não fez nenhuma resistência.

A sua história era curta. Ele não era pai de Mary. O verdadeiro pai da moça fora seu companheiro de aventuras, no Oeste. Ao morrer, deixara órfã aquela menina com dois anos, e encarregara Olivian Patrick de olhar por ela e administrar a sua fortuna. Essa fortuna devia ser entregue à moça quando ela atingisse os 21 anos, e assinaram documentos para isso. Olivian tinha as melhores intenções quando se encarregou de Mary, mas, como era muito esperto nos negócios, a fortuna cresceu rapidamente, e, naquela época, subia a mais de três milhões de dólares. E o momento de entregar todo aquele dinheiro à moça aproximava-se, pois que ela completaria 21 anos dentro de oito meses. Os seus instintos de avareza começaram a agir, até enlouquecê-lo. Não podia suportar a ideia de se separar nem de um pouco daquele dinheiro. Depois de muito refletir, viu que só havia um meio. Era eliminar Mary. Assim, a fortuna caberia toda só a ele. A ideia veio-lhe quando a sua revista Novo Mundo publicou a notícia da descoberta de Harry Brown sobre o tecido impermeável às balas. Comprou o invento e guardou-o para a ocasião oportuna. Quando Mary ficou noiva de Dick Peter, ele viu que as coisas pioravam para si, pois que se ela se casasse, então a fortuna passaria para Dick, e as suas esperanças ficariam ainda reduzidas.

Resolveu, então, matá-la, mas quis envolver a morte em mistério, e foi aí que errou. O seu modo de agir era simples. No fundo do parque, havia uma porta velha nunca usada. Ele pela frente saía como quem vai viajar e entrava novamente por aquela porta, indo para o seu quarto. Preparara, ali, uma espécie de ponte curva, em forma de meia-lua, que saindo da sua janela ia à janela do quarto de Mary. Assim, podia passar dum quarto para outro, sem deixar vestígio. Naquela noite em que aparecera à moça pela primeira vez, não esperava ser visto por ela. Diante do grito, viu o seu plano prejudicado, e precisou agir com rapidez. Matou Bob pensando que fosse Dick Peter, porque viu no noivo de Mary um adversário perigoso.

Percebendo que as suspeitas estavam caindo sobre o dr. Sammy Cave, matou-o e atirou-o num poço abandonado, situado no fundo do parque, coberto com uma laje de cimento. Desaparecido o dr. Cave, todas as suspeitas ficariam sobre ele.

Compreendeu, porém, que com Dick Peter pela frente nada poderia fazer, e decidiu matá-lo, o que pensou ter conseguido. Por isso, voltou naquela noite, certo de que tudo ficaria liquidado, mas enganara-se.

Olivian foi para a cadeira elétrica.

Passado algum tempo, depois de apagadas as maiores impressões sobre os dolorosos acontecimentos, Dick Peter e Mary uniram-se para sempre, vivendo inteiramente felizes, apesar das novas aventuras em que Dick continuou a meter-se, por gosto, e que contaremos a seu tempo.

 

Este conto foi extraído do livro Aventuras de Dick Peter (1940). ©Jerônimo Monteiro.

Fonte: http://www.se-pmmc.com.br/lerescrever/arquivos/aluno/5_ano_aluno.pdf  Acesso em 03/07/2020.

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